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APRENDA A SER FELIZ O QUE TEM

Descubra, nas palavras de um dos mestres budistas mais importantes e respeitados da atualidade, como isso é possível

Texto • Venerável Mestre Hsing Yün

O desejo é o grilhão fundamental que nos aprisiona às ilusões deste mundo. Por causa de nossos desejos, somos levados a nascer repetidas vezes em um dos seis planos de existência.

O Shastra Mahaprajnaparamita afirma que os desejos geram e nutrem sentimentos de insatisfação. Quando começamos a desejar algo sentimo-nos insatisfeitos porque ainda não conquistamos determinado objeto. Ao consegui-lo, sentimo-nos insatisfeitos porque aquilo não preenche nossas expectativas ou porque agora tememos perdê-lo. Depois de perder o que conquistamos, ou de aquilo ter envelhecido, de novo nos sentimos insatisfeitos. Se formos sábios, atentaremos para esse inevitável processo.

O poeta Su Tung-p’o disse: “Os desejos humanos são ilimitados e infindáveis, ao contrário da capacidade dos desejos de satisfazê-los”. Segundo os Avadanas: “Mesmo que os Sete tesouros chovessem dos céus, o desejo não seria satisfeito. O desejo gera alguns prazeres e muitos problemas. Sábio é aquele que compreende essa verdade”.

O Sutra dos Ensinamentos Legados afirma: “As pessoas que nutrem muitos desejos estão sempre em busca de meios de beneficiar-se e, assim, sofrem e criam muitos problemas. As pessoas com poucos desejos não sentem necessidade de ansiar por nada; portanto, são calmas e ficam livres de muitos problemas.”

Quando os sutras assim discorrem sobre desejos, estão se referindo aos desejos por coisas de que não necessitamos. Desejar um gole de água quando estamos com sede não nos prenderá a este mundo. O desejo de ter a piscina ao lado da qual possamos bebericar limonada quando nos der sede, entretanto, vai nos aguilhoar a este mundo.
 

A alegria de nos satisfazer com o que temos

Aprender a nos contentar com o que temos é o ponto de partida importante para o êxito na prática do Budismo. Devemos observar o que possuímos com certa satisfação neutra. Nossas posses não devem ser fonte de vergonha, culpa ou desejo. Caso realmente precisemos adquirir algo que ainda não temos, devemos nos dedicar a essa necessidade criteriosamente e sem o sentimento desequilibrado de que precisamos ter aquilo imediatamente e sem demora.

É preciso não confundir necessidades com desejos. Quando nossas necessidades básicas tiverem sido satisfeitas, devemos deixar que nossa consciência perambule livremente pela glória da existência e pela beleza do Dharma. Não se sobrecarregue com desejos inúteis que só fazem desviá-lo da verdade. Como budistas, nossa principal área de atenção é a mente, e não o mundo material.

O Sutra Bodhisattva Gocharopaya Visaya Vikurvana Nirdesha diz: “Os ambiciosos estão sempre tentando acumular bens e não se sentem satisfeitos nem mesmo quando conseguem o que querem. Seu raciocínio é transtornado e marcado pela ignorância , e esse estado os leva a aproveitar-se dos outros e a ficar pensando como deles tirar vantagens. Seu comportamento gera ressentimento e ira nesta vida e, depois que morrem, renascem em mundos nefastos. O sábio compreende tais consequências e, desse modo, aprende a se contentar com aquilo que tem.”

As Avadanas afirmam: “A maior bem-aventurança é saber estar sempre satisfeito”. O Sutra das Oito realizações do Bodhisattva afirma: “A mente que é incapaz de se contentar, querendo sempre mais, só faz contribuir para o infortúnio e inquietação. O bodhisattva é diferente. Ele sabe se sentir satisfeito, é tranqüilo na pobreza, consegue sempre se manter no caminho. Tornar-se sábio é o seu único desejo.”
 

O mundo dos indivíduos satisfeitos

A mente é o mundo. A mente que frui o contentamento em qualquer circunstância brinda-nos com a liberdade. Para além das diferenças, da cobiça, da luxúria que nos impele a abraçar a ilusão tantas e tantas vezes, a mente que sabe se sentir satisfeita repousa na equidade da verdade plena. Tal mente não sente necessidade de fazer comparações, não é calculista, não sofre e não passa pela dor. Ao atingir esse estado, a mente compreende que tudo no universo já lhe pertence: pássaros, flores, estrelas do céu, a borbulhante água corrente – tudo é mente e a ela pertence. Portanto, de que servem a possessividade e a cobiça?

Yen Hui, um imperturbável discípulo de Confúcio, foi assim descrito por seu mestre: “Vive em acomodações exíguas, com alimentos e bebidas simples, em circunstâncias desprezíveis para a maioria, mas ainda assim cheio de alegria”.

Mahakashyapa, um dos discípulos do Buda, passou anos vivendo em cemitérios remotos, pois isso era parte de sua prática ascética. Ainda assim, nunca considerou que estivesse sofrendo ou que algo lhe faltasse.

O mestre Ch’an japonês Ryokan (1758-1831) viveu “com uns poucos grãos em uma saca e um pouco de lenha do fogão”. Entretanto, “sentava-se com as pernas cruzadas, muito à vontade, em sua cabana de sapé, sob a chuva”. Sentia-se sempre contente e teria ficado perplexo com a ideia de querer que algo fosse diferente do que era.

Atualmente, é difícil viver com tanta simplicidade como no passado, pois as sociedades de então baseavam-se na agricultura e tinham um ritmo muito mais lento. As sociedades modernas são resultado de complexas realizações tecnológicas e exigem um nível mais alto de atividade para simplesmente satisfazermos nossas necessidades básicas. Mesmo não podendo copiar o estilo de vida dos sábios de outrora, podemos aprender muito com seu espírito.

O espírito de pessoas como Ryokan ou Yen Hui era marcado por aceitação, equanimidade e profunda satisfação. Hoje, talvez, tenhamos de pagar o financiamento do carro ou as prestações da casa, ou fazer malabarismos com muitos fatores complexos para apenas conseguirmos nos manter. Ainda assim, podemos viver de forma a honrar a confiança fundamental no fluxo da vida, e isso nos faz sentir satisfeitos com o que quer que tenhamos. Ainda podemos viver com os pés no chão e a cabeça no céu.
 

Cultivando o bem – Venerável Mestre Hsing Yün

Esse texto foi extraído do livro Cultivando o bem (editado pela Cultura Editores Associados e pela BLIA, Buddha’s Light do Brasil), de autoria do Venerável Mestre Hsing Yün.

Nascido em 1927, na província de Chiangsu na China, Hsing Yün ordenou-se monge aos 12 anos. Em 1949, durante a revolução maoísta, Hsing mudou-se para Taiwan. Foi lá que revitalizou o budismo humanista e fundou a Ordem Budista de Fo Guang Shan (Montanha da Luz de Buda).

Ao lado de Dalai Lama, Hsing é um dos mestres budistas mais conhecidos e respeitados da Ásia.

A Ordem de Fo Guang Shan tem 220 templos espalhados em todo o mundo, inclusive no Brasil. Localizado em Cotia, na Grande São Paulo, o Templo Zu Lai é considerado o maior monastério budista da América Latina.