Dia dos Mortos: entre o sagrado e o festivo, a celebração mexicana que desafia a morte

Mais do que um simples feriado, o Día de los Muertos é uma das manifestações culturais mais profundas e simbólicas do México. Celebrada entre 31 de outubro e 2 de novembro, a festa combina elementos das antigas civilizações mesoamericanas — como os astecas, maias e zapotecas — com as tradições católicas trazidas pelos espanhóis no século XVI.
Reconhecida pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade, essa celebração é uma verdadeira ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos, um testemunho do sincretismo religioso e da resistência cultural dos povos indígenas.

A pirâmide é um templo dedicado ao deus Kukulkán, a “serpente emplumada”, uma das principais divindades maias, relacionada ao vento, à sabedoria e à renovação da vida.
Sua estrutura foi projetada com precisão astronômica e simbólica, refletindo o profundo conhecimento dos maias sobre o tempo e o cosmos.
Origens pré-hispânicas: a morte como continuidade da vida
Muito antes da colonização espanhola, os povos originários da região que hoje conhecemos como México já cultuavam seus mortos. Para eles, a morte não representava o fim, mas uma transição para outra etapa da existência. Os astecas, por exemplo, acreditavam que a alma continuava viva em outro plano, regido por deuses específicos.
Entre as divindades mais veneradas estava Mictecacíhuatl, conhecida como a “Senhora dos Mortos”, guardiã do Mictlán, o submundo. Durante rituais dedicados a ela, crânios de entes queridos eram preservados como símbolos de renascimento e continuidade espiritual. Segundo o historiador Miguel León-Portilla, em “La Filosofía Náhuatl” (1956), “os mexicas compreendiam a vida e a morte como forças complementares — o morrer era apenas mudar de morada no universo”.
Os maias e zapotecas também compartilhavam dessa visão cíclica da existência, realizando cerimônias agrícolas e funerárias que relacionavam a fertilidade da terra com o retorno das almas ancestrais.

A fusão com o catolicismo e o nascimento de uma nova tradição
Com a chegada dos espanhóis e o avanço da evangelização católica, os missionários tentaram suprimir as celebrações indígenas ligadas à morte. Contudo, as crenças nativas mostraram-se resilientes. Para facilitar a conversão, os religiosos adaptaram as datas e ritos locais às comemorações católicas de Todos os Santos (1º de novembro) e Finados (2 de novembro).
Dessa fusão nasceu o atual Día de los Muertos, que transformou o luto em festa. Como afirma Octavio Paz em “O Labirinto da Solidão” (1950), “o mexicano não teme a morte: ele a acaricia, a zomba, dorme com ela, é sua amante constante”. A citação sintetiza o espírito da celebração — uma convivência alegre e reverente com a finitude.

O simbolismo dos dias e das oferendas
Durante o período entre 31 de outubro e 2 de novembro, acredita-se que o véu entre o mundo dos vivos e o dos mortos se torna mais tênue, permitindo o reencontro das almas com seus familiares.
Cada dia tem um significado específico:
31 de outubro a 1º de novembro: celebra-se o Día de los Angelitos, dedicado às crianças falecidas.
2 de novembro: é reservado aos adultos, momento de maior devoção e festa.
As oferendas (ofrendas) são o coração da celebração. Montadas em altares coloridos, elas incluem:
Frutos da terra: tangerinas, abóboras e cana-de-açúcar.
Frutos do vento: incensos e aromas para guiar as almas.
Frutos da água: vasos para saciar a sede dos espíritos.
Frutos do fogo: velas acesas nos quatro pontos cardeais, iluminando o caminho dos mortos.
Fotografias, objetos pessoais e comidas favoritas dos falecidos completam o altar, que se torna um retrato espiritual do amor e da memória familiar.
A flor de cempasúchil (tagetes), símbolo solar, é outro elemento essencial. Segundo a tradição, suas pétalas douradas iluminam o caminho das almas.
Cultura viva: arte, música e celebrações pelo país
A festa do Día de los Muertos se espalha por todo o México, mas algumas cidades concentram celebrações emblemáticas:
Aguascalientes: abriga o Festival Cultural de Calaveras, dedicado à icônica figura de La Catrina, criada pelo artista José Guadalupe Posada no século XIX. O evento inclui exposições, gastronomia, desfiles e o famoso Museu da Morte.
Oaxaca de Juárez: o coração das comemorações populares, com desfiles de comparsas — músicos e dançarinos vestidos de caveiras —, além de rituais nos cemitérios iluminados por velas e flores.
San Andrés Míxquic (Cidade do México): cemitérios são decorados desde 30 de outubro com altares, flores e velas, acompanhados de apresentações teatrais e musicais.
Tuxtepec: conhecido pelos altares floridos e pelo concurso regional que premia os mais belos, decorados com cempasúchil e objetos dos falecidos.
Xochimilco: oferece passeios noturnos de barco nos canais e a encenação da lenda de La Llorona, um espetáculo sombrio e poético.
Parque Xcaret (Riviera Maya): promove o Festival de Tradições de Vida e Morte, com gastronomia, danças, teatro e rituais indígenas contemporâneos.

Entre o sagrado e o profano: a mensagem eterna da celebração
O Día de los Muertos é uma festa paradoxal: colorida e alegre, mas profundamente espiritual. Não se trata de lamentar as perdas, mas de celebrar a continuidade da vida através da memória.
Como resume a antropóloga Elsa Malvido, pesquisadora do Instituto Nacional de Antropología e Historia do México, “o culto aos mortos é o espelho mais fiel da alma mexicana, onde a morte não é negação, mas companheira da existência”.
Assim, enquanto o mundo ocidental costuma tratar a morte com silêncio e temor, o México a transforma em música, cor e poesia — lembrando a todos que, ao celebrar os que partiram, reafirmamos a beleza e o valor da vida.