Mulher não pode estudar cabala

Por muito tempo, a cabala ficou restrita aos homens. Mas isso já mudou. Há quem diga até que, sensíveis, emocionais, intuitivas e ávidas por autoconhecimento, as mulheres seriam mais aptas a entender essa sabedoria espiritual

Texto • Lívia Filadelfo

A sabedoria da cabala ensina que as mulheres já nascem em um nível espiritual mais elevado do que os homens. Considerando que, por sua natureza, a alma feminina é essencialmente sensível e intuitiva, a afirmação não causa espanto. O curioso, nesse caso, é que por milhares de anos o acesso aos ensinamentos do misticismo judaico era proibido para elas.

Desde de que o Zohar, seu principal livro, foi publicado há mais de dois mil anos, a cabala esteve restrita a um seleto grupo de eruditos, homens com mais de 40 anos, versados nas leis e costumes judaicos. Reclusos e silenciosos em seus quartos de estudos, eles provavelmente ficariam surpresos – e até mesmo enfurecidos – se soubessem que um dia seus mistérios pudessem ser desvendados por pessoas comuns e, inclusive, pelas mulheres.

A explicação para a restrição estava na crença de que o estudo da cabala é tão atraente e interessante que pode levar as pessoas a abandonar o mundo material. No caso das mulheres, o risco seria que elas esquecessem suas obrigações com o marido e os filhos. “Como elas não tinham o dever de sustentar a família, os homens acreditavam que elas já estavam por demais afastadas do mundo concreto. Se, além disso, tivessem acesso aos textos cabalistas, poderiam se desprender total e completamente da vida real”, explica Rachel Reichhardt, coordenadora do grupo de mística da Comunidade Shalom.

Até mesmo hoje em dia, nas correntes mais tradicionais do judaísmo, como as ortodoxas, ainda é comum que apenas homens participem dos estudos da tradicional sabedoria oculta. Mas as linhas mais progressistas já permitem – e até estimulam – a participação da mulher.

“Despertar” do sono espiritual

Essa abertura começou há cerca de 300 anos, com um movimento de renovação espiritual que ficou conhecido como chassidismo, liderado pelo rabino Baal Shem Tov (1698-1760). Ele defendia que a cabala tinha de ser revelada para todos os seres humanos, para “despertar” o mundo do sono espiritual. Suas ideias não foram aceitas imediatamente, pois para muitas autoridades rabínicas nem todas as pessoas são preparadas espiritualmente para entender a profundidade da filosofia.

No caso das mulheres, a explicação é um pouco diferente (e mais galanteadora, digamos assim): como elas já nascem mais espiritualizadas, simplesmente não precisam estudar a cabala.  “A alma feminina é mais intuitiva e mais elevada, entende as coisas pelas sensações. Por isso, ela não precisa estudar tanto. O homem é obrigado a estudar para alcançar o conhecimento que permite a conexão com a luz do mundo infinito, a mulher só estuda se quiser”, diz Ayala Tuthchsznajder, uma das coordenadoras do grupo de estudos Bnei Baruch no Brasil.

O diferencial feminino

Para algumas estudiosas da cabala, como Rachel Reichhardt, não existem diferenças de nível espiritual entre os sexos: “Isso é uma forma de preconceito, uma desculpa para que as mulheres sejam excluídas do estudo”. Ela explica que para a cabala não há distinção entre os sexos e que essas diferenças estão presentes apenas no mundo social e material. “Somos a imagem e semelhança de Deus e Ele não tem sexo. Existe o mundo feminino e o masculino e cada pessoa tem esses dois mundos em si. A diferença é que os homens possuem mais energias da razão e da justiça e, nós, mais intuição e misericórdia”.

Sob todos os pontos de vista, o diferencial feminino está na facilidade de entender a espiritualidade, por ela ser mais intuitiva. “Nos grupos de estudo isso é bastante evidente, os homens têm mais dificuldade de entender o mundo da espiritualidade”, afirma Ayala Tuthchsznajder.

Entendimento compartilhado

Apesar das diferenças entre as correntes judaicas, Ayala Tuthchsznajder garante que não existe esse tipo de preconceito no seu grupo de estudos. “Todos me respeitam na comunidade, até mesmo aqueles que acreditam que as mulheres não deveriam estudar cabala”. Ela destaca que, independentemente do sexo, as dificuldades para os iniciantes são as mesmas: o primeiro passo na cabala é descobrir o quanto você é egoísta e não altruísta – e essa descoberta é um choque muito grande. Nesse momento, diz ela, o estudioso precisa do apoio do grupo para não desistir dos estudos. “Na época em que tive esse choque, meu grupo me ajudou a entender que o Criador me fez assim para que eu pudesse atingir a perfeição. Essa sustentação foi fundamental”, relata.

Além das dificuldades, o significado da cabala também é o mesmo para homens e mulheres: entendimento compartilhado. E entender, para a cabala, não é um processo meramente intelectual, mas a combinação de razão e emoção. Nesse processo, o intuito não deve ser apenas o de melhorar a própria vida. A prática da cabala consiste em se tornar melhor a cada dia, em um processo contínuo de crescimento que deve ser dividido com todos à sua volta. O cabalista é um canal que recebe e compartilha seus conhecimentos para tornar o mundo um lugar melhor – para homens e mulheres viverem em paz.

 

PARA SABER MAIS

Cabala – um enfoque feminino
Vivianne Crowley
Editora Pensamento

A autora mostra que a cabala é um caminho espiritual que pode ser seguido tanto por homens quanto por mulheres. Cada aspecto abordado é acompanhado por exercícios espirituais e práticos, guiando o leitor no caminho do autoconhecimento.