Shodô: Budismo traduzido em artes

Uma das artes mais nobres do Japão, o shodô representa na escrita toda a concepção filosófica do budismo. Saiba mais sobre essa tão simples e bela tradição.

Texto • Paula Bianca de Oliveira – Triada.com.br

Quem observa um calígrafo de shodô em ação logo compreende que esse tipo de arte exige muito mais que os materiais certos, como pincel, papel e tinta específicos. Estudo, concentração, disciplina e interiorização também são elementos fundamentais da prática. Isso porque o shodô não se resume à técnica ou ao treino; ele possui uma ligação histórica com a tradição zen budista. Originado na China, o shodô foi introduzido no Japão com a chegada do budismo ao país, no início do século VIII.

“As escrituras compiladas pelos monges budistas eram feitas em caracteres chineses que, naquela época, já incitavam uma espécie de fascínio naqueles que as observava”, conta Nampo Kurachi, professor da Aliança Cultural Brasil-Japão, em São Paulo, e um dos pioneiros do shodô no país.

Ele explica que, por ter se desenvolvido aliado à filosofia zen-budista, o shodô (sho = escrita; do= caminho) leva as pessoas à busca da evolução do conhecimento e do espírito, à interação entre corpo e mente. “A filosofia budista é representada através do vigor das pinceladas, dos movimentos dos traços e das pausas”, afirma.

Sem concentração, sem arte

Para muitos estudiosos, o shodô representa um dos caminhos que conduzem ao zen. Geralmente, a prática se inicia antes mesmo de o pincel tocar a folha de papel: ao observar a tinta e sua movimentação no recipiente em que ela é preparada, misturando-se com a água, já se inicia um processo de interiorização.

Yukiko Takaishi, empresária nascida no Japão e cidadã brasileira há mais de 40 anos, estudou o shodô durante toda a infância e, até hoje, guarda seus ensinamentos. “Antes de começar a desenhar os traços, é preciso fechar os olhos, respirar profundamente e concentrar todos os pensamentos na altura do umbigo. Dessa forma, estabelecemos uma ligação com nossas origens mais profundas, pois essa região do corpo representa a origem da vida, o cordão umbilical, o começo de tudo”, diz ela.

Para conseguir fazer ideogramas perfeitos, não se pode parar um traço na metade – daí a necessidade de estar absolutamente concentrado. “Você deve aplicar no pincel toda a intensidade da palavra que está sendo escrita. Afinal, você não está simplesmente desenhando, mas sim expressando diferentes aspectos da filosofia zen budista em um ideograma repleto de significados”, orienta Yukiko.

Antes das primeiras pinceladas, alguns calígrafos procuram visualizar o papel em sua extensão para, depois, fluir em um único movimento com os olhos fechados. No Japão, essa técnica recebeu o nome de shinryu (espírito fluido), uma forma de alcançar o vazio existente entre a matéria e o espírito.

Disciplina e talento

No shodô, cada ideograma tem um número exato de traços e uma ordem certa para serem desenhados. “Sem essa disciplina, você não consegue desenhar exatamente o ideograma. Qualquer alteração nesse sentido pode levá-lo a um ideograma com significado completamente diferente”, explica Yukiko.

Com o tempo, cada calígrafo vai criando um estilo próprio, o que gera algumas diferenças entre uma caligrafia e outra. Por isso mesmo, também é preciso seguir as regras de proporcionalidade dos ideogramas, que determinam exatamente como devem ser feitos os traços do pincel. “O calígrafo consegue expressar nos traços um sentimento muito particular. Por isso, como uma obra de arte, cada shodô é diferente e único, mesmo que tenha o mesmo ideograma”, diz Nampo.

A tonalidade da tinta, a pressão do pincel sobre o papel, a velocidade da escrita e os espaços entre cada pincelada variam de calígrafo para calígrafo. Mas a qualidade da obra é avaliada pelo equilíbrio natural dos caracteres, sua composição como um todo, a variação entre os traços grosso e fino, a quantidade de tinta no papel e o ritmo com que foi escrito. 

Juntando-se os significados que o próprio ideograma desenhado representa, com a sua beleza estética, têm-se uma arte completa. Tanto assim, que muitos calígrafos são criadores de verdadeiras obras-de-arte, que chegam a ser expostas até mesmo em museus. “Mas para os japoneses, essa forma de expressão não é só uma arte, também demonstra uma grande densidade espiritual”, lembra Nampo.

Entre papéis e pincéis

Até hoje, as escolas japonesas mantêm o shodô como parte do currículo, promovendo concursos anuais e incentivando a disseminação da arte entre praticantes de todas as idades. Conheça, a seguir, os utensílios utilizados no shodô e as principais características de cada um deles.
 

Bunchin: vara de metal que serve para fixar o papel na superfície durante o processo de escrita.
Shitajiki: superfície plana e suave onde se apóia o papel.
Hanshi: papel branco muito fino, especial para a prática da caligrafia. É feito com palha de arroz e fibra de bambu, ou então com fibra de banana.
Suzuri: recipiente preto onde se coloca a tinta.
Sumi: tinta em barra, feita à base de carvão. É misturada com água no suzuri para, então, ser utilizada. Atualmente, já se utiliza tinta previamente preparada.
Fude: pincel feito com cerdas de crina de cavalo, pêlos de carneiro, coelho ou rena (foto acima). Existe em vários tamanhos: em geral, os maiores são para a escrita dos caracteres principais, e os mais curtos servem para assinar o nome do artista.