Para quem deseja entender melhor as ordens secretas, vale a pena conferir o que um dos mais importantes autores da literatura universal tem a dizer sobre a maçonaria. Com a palavra, o poeta Fernando Pessoa.
Texto • Redação / Triada.com.br
Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa, Fernando Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa, e faleceu em 1935, na mesma cidade. Extremamente inteligente e talentoso, criou múltiplas facetas interiores do ser humano, inventando pseudônimos e heterônimos através de estilo e escrita diferenciados. O que você confere a seguir são trechos de um artigo (extraídos do livro Fernando Pessoa: obra em prosa, da Editora Nova Aguilar) publicado por Fernando Pessoa em 1935 a respeito da maçonaria. Embora não fosse um maçom, o escritor estudava ocultismo com seriedade e escreveu em defesa desta Ordem quando o político português José Cabral quis banir as “ordens secretas” daquele país. Acompanhe.
“Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos anti-maçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada, pois, naturalmente, terá nutrido o seu anti-maçonismo da leitura da imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares da matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas.
Ora se o Sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem maçônica, suponho que em igual condição estejam muitos dos outros membros da Assembléia Nacional, com a diferença de que se não propuseram legislar sobre matéria que ignoram.
Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou, porém, anti-maçom, pois o que sei do assunto me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da maçonaria – parte que nada tem de político ou social -, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto – assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora.
Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a maçonaria é uma associação secreta. Não é. A maçonaria é uma Ordem secreta, ou com plena propriedade, uma Ordem iniciática.
A Ordem maçônica é secreta por uma razão direta e derivada – a mesma razão porque eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos primitivos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento – toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império – precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são brindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria remota.
A maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes – políticos, sociais e até rituais – de país para país, e até, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência se houver mais que uma. Dou um exemplo: Há na França três Obediências independentes – o Grande Oriente da França, a Grande Loja da França e a Loja Regular, Nacional e Independente para França e suas Colônias. O Grande Oriente é acentuadamente radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anti-clerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma.
Embora, porém, a maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e, sobretudo, o dos graus simbólicos é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por obediências diferentes.
A maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano – isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita, portanto, a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage, quanto à atitude social, diferentemente.
Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria – como, aliás, qualquer instituição humana secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste terceiro ponto de vista, toda a maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia – a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama “doutrina maçônica” são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano.
Ora, o primeiro erro dos anti-maçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má-fé. Já o segundo erro dos anti-maçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a maçonaria como afetam toda a gente.
Resulta de tudo isto que todas as campanhas anti-maçônicas – baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente – estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação?”