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Dia de Finados na Cultura Afro-Latina: Memória, Fé e Ancestralidade

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O Dia de Finados, celebrado em 2 de novembro, é uma das datas mais simbólicas do calendário religioso ocidental. Embora amplamente associado à tradição católica, suas raízes remontam a práticas muito mais antigas, com influências pagãs, africanas e indígenas, que atravessaram os séculos e se misturaram em diferentes expressões de fé na América Latina.

 

Origens e Transformações no Cristianismo

Desde o século II, os primeiros cristãos já costumavam rezar pelos mortos e visitar túmulos de mártires. Foi apenas no século X, sob a orientação do abade Odilo de Cluny, na França, que o dia 2 de novembro foi oficializado como data de orações por todos os fiéis defuntos — prática que se espalhou pelos mosteiros beneditinos e depois por toda a Igreja Católica.

Segundo o teólogo Jacques Le Goff, em O Nascimento do Purgatório (1981), a consolidação do Dia de Finados está ligada ao desenvolvimento da crença no purgatório, um espaço intermediário entre a Terra e o Paraíso, onde as almas se purificam antes de alcançar a salvação.

 

Perspectivas Espiritualistas: Entre a Oração e a Desmaterialização

No Espiritismo, codificado por Allan Kardec no século XIX, o Dia de Finados não é considerado uma data exclusiva para homenagens aos mortos. As preces podem ser feitas em qualquer momento, pois, segundo a doutrina, “o verdadeiro culto está no coração e na lembrança afetuosa”. A visita a túmulos e o uso de velas não são essenciais, uma vez que os espíritos devem se desprender do mundo material.

 

Umbanda: Luz, Preceito e Culto às Santas Almas

Na Umbanda, religião brasileira de matriz afro-brasileira e sincretismo católico, o Dia de Finados tem um profundo significado espiritual. É o momento de cultuar as Santas Almas e os Pretos Velhos, entidades associadas à sabedoria e à caridade.
Os umbandistas acendem velas para seus guias e anjos de guarda, fazem orações e seguem preceitos de purificação, evitando o consumo de álcool, relações sexuais e o uso de roupas escuras. O objetivo é fortalecer o corpo e o espírito, promovendo introspecção e vigilância.

A antropóloga Rita Laura Segato, em estudos sobre religiosidade afro-brasileira (Universidade de Brasília), ressalta que essas práticas revelam uma “cosmologia relacional”, onde vivos e mortos coexistem em um ciclo contínuo de trocas e aprendizados.

 

Quimbanda: Entre o Mistério e o Poder das Almas

Na Quimbanda, tradição afro-brasileira distinta da Umbanda, o Dia de Finados não é uma celebração obrigatória. Alguns adeptos, contudo, dedicam o dia ao culto de Exús e Pombagiras do Reino das Almas, entidades que transitam entre os mundos e são associadas ao cemitério.
Essa prática, segundo o pesquisador José Beniste, em As Sete Linhas de Umbanda (2010), reflete uma reelaboração simbólica das antigas religiões banto e yorubá, adaptadas ao contexto urbano e sincrético brasileiro.

 

Jurema Sagrada: O Culto aos Antepassados

Na Jurema Sagrada, também chamada de Catimbó Jurema, o Dia de Finados é marcado por rituais de homenagem aos ancestrais e mestres falecidos. O Mestre Juremeiro Alberto Júnior explica que, quando um juremeiro parte, é realizada uma oferenda na “árvore ancestral da Jurema”, onde são lembrados nomes de familiares e guias espirituais.
Esses ritos unem elementos do xamanismo indígena e do catolicismo popular, expressando uma reverência profunda à linhagem espiritual.

Haitianos indo ao cemitério no dia de finados.

Vodu Haitiano: Festa dos Mortos e Devoção aos Lwa

No Vodu Haitiano, o Dia de Finados é uma celebração nacional que mistura rituais católicos e africanos. Os devotos homenageiam os Lwa das Almas, especialmente Barão Samedi e Maman Brigitte, espíritos guardiões dos cemitérios e da passagem entre mundos.
Ofertas de rum, café, comidas e flores são deixadas sobre os túmulos, acompanhadas de cânticos e danças que celebram a continuidade da vida. Segundo o antropólogo Alfred Métraux, em O Vodu Haitiano (1958), “a morte, no Vodu, não representa um fim, mas uma transformação: os mortos permanecem ativos, guiando e protegendo os vivos”.

 

Maria Lionza e o Culto Venezuelano aos Espíritos

No Culto a Maria Lionza, praticado na Venezuela, o Dia de Finados não é uma data principal do calendário litúrgico — sendo o 12 de outubro o dia mais sagrado. Ainda assim, alguns devotos realizam orações pessoais aos seus mortos, unindo fé popular e devoção ancestral.

 

Ancestralidade como Continuidade da Vida

O Dia de Finados, em suas múltiplas expressões afro-latinas, vai muito além do luto. Ele representa a comunhão entre mundos, a reafirmação da memória coletiva e o culto à ancestralidade — valores centrais em diversas tradições africanas.

Como escreveu o filósofo africano John Mbiti em Religiões e Filosofia Africana (1969), “na África, os mortos nunca estão realmente mortos; eles continuam vivos nas memórias, nos nomes e nas ações dos vivos”.

 

📚 Referências 

BENISTE, José. As sete linhas de Umbanda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CORRÊA, Norton Figueiredo. A Jurema e o Catimbó no Nordeste. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1997.

LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Petrópolis: Vozes, 1981.

MBITI, John S. Religiões e filosofia africana. São Paulo: Paulus, 1999.

MÉTRAUX, Alfred. O vodu haitiano. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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