Tradição milenar celebra a vida e a morte com alegria, cores e personagens míticos como La Llorona, o cão Xoloitzcuintli e a controversa Santa Muerte.
Por Eduardo Henrique
Enquanto boa parte do mundo encara o Dia dos Mortos como um momento de luto e recolhimento, o México transforma a data em uma celebração vibrante de cores, música e memória. Lá, o “Día de los Muertos” é mais que um ritual de saudade: é um encontro entre mundos. Durante os dias 1º e 2 de novembro, as ruas se enchem de flores de cempasúchil, velas e caveiras coloridas, em uma homenagem alegre àqueles que já partiram.
Com raízes que remontam às civilizações pré-hispânicas e influências do catolicismo colonial, a festa representa uma profunda convivência entre vivos e mortos. Com o passar do tempo, a tradição ultrapassou fronteiras e se consolidou como símbolo do patrimônio imaterial da humanidade, reconhecido pela UNESCO desde 2008.
Mas o que poucos sabem é que, por trás das oferendas e das caveiras de açúcar, existem personagens lendários que atravessam séculos — espíritos, deuses e entidades que ajudam a explicar a forma única com que o povo mexicano encara a morte.

La Llorona: o pranto eterno que ecoa pelos rios do México
Entre as figuras mais conhecidas da cultura mexicana está La Llorona, a mulher que chora. A lenda, registrada em versões populares desde o período colonial, conta a história de uma mulher — muitas vezes chamada María — que, tomada por ciúmes e desespero, afogou os próprios filhos em um rio. Arrependida, passou a vagar pelas noites, chorando e gritando por eles: “¡Mis hijos! ¡Dónde están mis hijos!”.
Pesquisadores, como a antropóloga mexicana Amparo Sevilla, apontam que a origem da Llorona remonta à deusa Cihuacóatl, entidade asteca associada à maternidade e à morte no parto. Cronistas como Bernardino de Sahagún, em Historia General de las Cosas de Nueva España (século XVI), já mencionavam uma mulher-espírito que vagava pelos céus, chorando pelo destino de seu povo — prenúncio da chegada dos conquistadores espanhóis.
Hoje, La Llorona é parte inseparável do imaginário popular e volta a ser lembrada durante o Dia dos Mortos, simbolizando o arrependimento, a travessia e a ligação entre os mundos. Sua história, reinterpretada inúmeras vezes em filmes e livros, continua a ecoar como um alerta e um mito de purificação.

Xoloitzcuintli: o cão sagrado que guia as almas ao além
Antes mesmo da chegada dos espanhóis, os povos mesoamericanos acreditavam que a alma dos mortos precisava cruzar um vasto submundo chamado Mictlán — uma jornada de nove níveis, repleta de obstáculos. Segundo a tradição asteca, somente com a ajuda de um Xoloitzcuintli, cão sagrado de pele nua, seria possível atravessar o rio que separa a vida da morte.
O termo vem do náhuatl Xólotl (deus dos relâmpagos e da morte) e itzcuintli (cão). Acreditava-se que esses animais eram companheiros espirituais dos humanos e que, após a morte, guiavam a alma de seus donos pela escuridão até o descanso eterno. Por isso, muitos xolos eram enterrados junto aos mortos — um costume que arqueólogos confirmaram em escavações de Teotihuacán e Colima.
Nos dias atuais, o xoloitzcuintli é símbolo nacional do México e presença constante nas homenagens do Dia dos Mortos. Em 27 de outubro, data dedicada aos animais falecidos, muitos mexicanos deixam oferendas para seus antigos companheiros — um gesto de gratidão a quem, segundo a crença, os ajudará um dia a atravessar o mesmo caminho.

Santa Muerte: a Senhora da Foice e dos Marginalizados
Entre as figuras mais recentes, mas igualmente poderosas, está Santa Muerte, a personificação da morte que se tornou objeto de devoção popular. Retratada como um esqueleto coberto por um manto colorido, segurando uma foice e um globo, ela mistura elementos do catolicismo com antigas tradições indígenas de culto à morte.
A origem moderna da Santa Muerte remonta às décadas de 1940 e 1950, no bairro de Tepito, na Cidade do México — um dos mais humildes da capital. O culto se espalhou rapidamente entre pessoas marginalizadas: imigrantes, trabalhadores informais, membros da comunidade LGBTQ+ e até grupos ligados ao narcotráfico, que a veem como uma protetora imparcial.
Apesar de ser condenada pela Igreja Católica, a Santa Muerte ganhou altares públicos, templos e milhões de seguidores. No Dia dos Mortos, suas imagens são adornadas com flores, velas e cigarros, simbolizando a convivência entre a fé, o medo e a reverência.
O pesquisador Andrew Chesnut, autor de Devoted to Death: Santa Muerte, the Skeleton Saint (2017), descreve a entidade como “a santa dos que não têm santos”, expressão da devoção popular que desafia fronteiras e dogmas.
A Festa da Vida que Celebra a Morte
Mais do que uma data no calendário, o Dia dos Mortos representa o modo como o México entende a própria existência. Nas casas e cemitérios, as famílias constroem altares com fotografias, velas, comidas e bebidas favoritas de seus entes queridos. As flores de cempasúchil — conhecidas como “flor dos mortos” — são usadas para guiar as almas de volta ao lar.
A presença de figuras como La Llorona, o cão Xoloitzcuintli e Santa Muerte revela o quanto a cultura mexicana transforma o medo em beleza e a ausência em celebração.
No México, a morte não é o fim — é o reencontro. É o momento em que, entre o céu e o Mictlán, os vivos e os mortos dançam juntos mais uma vez.




