segunda-feira, julho 1, 2024
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24 e 25 de Dezembro: Èṣù não é o Diabo!

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Na terra yorùbá, durante o período do dia 24 a 25 de dezembro, anualmente, algumas famílias se reúnem através de uma campanha que muita das vezes ocorre até procissões para levar ao mundo a mensagem de que Èṣù não é o Diabo.

• Texto – Awo Ifá Leké Eduardo Henrique

O Culto aos Òrìṣà é muito mais antigo comparado ao Cristianismo que é uma religião bem mais recente. Como especialista no idioma hebraico e grego, posso afirmar que há muitas coisas que não são citadas na Bíblia, pois trata-se de um livro baseado nas experiências de seus autores, os judeus exilados na Babilônia e que escreveram a partir do século VI a.C, e o que muitos chamam de “antigo testamento” se formos reparar a total importância dada foi aos egípicios e eles não conheciam um império muito maior que era os dos chineses. A Bíblia não cita alguns animais como pandas e coalas, também não afirma que guaraná e açaí existe, e quando um cristão me diz “Èṣù não é citado na bíblia”, oras, quantas coisas não são citadas na Bíblia e existem? E nem por isto, são ruins!. Precisamos entender que o livro de uma religião não pode ser usado como poder moderador do mundo, jamais.

O Diabo não existiu na Bíblia, foi totalmente modificado e, somente começou a ser citado a partir da Idade Média onde houve a afirmação de que um anjo (Satã) da cultura judaica e islâmica seria o próprio Diabo dos cristãos, no decorrer desta matéria meu objetivo é lhe mostrar que este Diabo também conhecido como Satanás, não tem nada a ver com Èṣù.

VISÕES DE MUNDOS DIFERENTES

Primeiramente preciso esclarecer que na Cultura Tradicional Yorùbá, não acreditamos em demônios ou em Satanás. Não há a crença de um ser que é inimigo de Olódùmarè (Deus) e que disputa almas contra a suprema energia criadora da existência.

Os yorùbás acreditam que existe os Ajoguns (considerados inimigos da humanidade), no Odù Osá (parte literal do Culto de Ifá) explica que são energias negativas que surgiram como forma de castigar os seres humanos pela maldade, são as consequências: ikú (morte), àrùn (doenças), òfò (prejuízos), ègbà (paralesia), òràn (tribulações), èpè (pragas), èwòn (prisão), èse (preocupações de qualquer tipo)… Da mesma forma que carnalmente quando chutamos alguém podemos sentir dor nos pés, os atos negativos praticados podem atrair más energias para as nossas vidas, porém isto não tem nada a ver com Èṣù.

COMPARAÇÕES DA VISÃO DO CRISTÕES E DOS YORÙBÁS

Frases comumentes ditas pelos cristões:

1. “Satanás habita no inferno e disputa almas contra o Ser Supremo.”

2. “Satanás busca atrapalhar a comunicação das pessoas com Deus e afastá-los do bom caminho.”

3. “Satanás existe para causar desordem, confusões e destruir a humanidade.”

Frases comumentes ditas pelos yorùbás:

1. Èṣù é um dos Òrìṣà (divindade) mais próximo de Olódùmarè e ele que autoriza quem entra e sai dos espaços do Orún (plano espiritual).

Èṣù Elèbo̩
(Èṣù que recebe as oferendas!).

Èṣù Ọ̀dàrà
Èṣù que traz felicidades! (resultados).

Èṣù Òjíse Ẹbọ
(Èṣù que leva as mensagens dos rituais).

2. Èṣù é responsável por levar nossas orações, rezas e preces para os Òrìṣà e Olódùmarè, além de trazer respostas e bênçãos do espiritual por ações praticadas.

3. Èṣù Olòpa Elédunmarè Laelae…
Èṣù é dono do porrete do Deus Supremo para sempre!
Observações: a palavra “Olòpa” em yorùbá, é como nos referimos aos policiais, por um motivo bastante simples, os policiais portam um porrete. Podemos traduzir que algumas cantigas e rezas ao citar a frase em destaque esteja se referindo que Èṣù é o policial de Olódùmarè. Pois é o responsável por conferir se as leis estão sendo aplicadas e isto não se refere apenas ao lado carnal, mas as leis que regem, a física, a natureza e os universos, e as ditadas pela energia de criação suprema. Um dos motivos para a Terra possuir Àsé suficiente para os processos de translação e rotação do nosso planeta é por conta da força de Èṣù.

Èṣù Òkòtó
(Caracol da evolução), responsável pelas voltas, pelos movimentos.

NÃO JULGUE AQUILO QUE NÃO CONHECE!

Èṣù não é um ser maléfico. Èṣù nos traz retorno daquilo que praticamos, particularmente, eu considero este Òrìṣà como o próprio universo.

Toda comunidade tradicional possui suas regras, seus preceitos que precisam ser cumpridos que é uma forma de demonstrar nossa devoção e sacrifício em prol daquilo que acreditamos e Èṣù é o responsável por vigiar cada um e analisar o quanto somos merecedores daquilo que solicitamos.

Na terra yorùbá, é o Òrìṣà mais popular entre as cidades, posso assegurar que na boa parte dos locais que tem culto para algum dos Òrìṣà, tem culto para Èṣù e isto não seria somente dentro do espaço religioso ou na natureza. Ele possui um papel fundamental para trazer a ordem e o equilíbrio, principalmente nos rituais, tanto que a relação de um recém-iniciado em Ifá com Èṣù é muito grande.

E infelizmente, os missionários cristãos resolveram criar movimentos para associar a figura de Èṣù com o Diabo.

MAS E SATÃ É UM SER MAL?

Deixo bem claro que as frases que foram citadas sobre Satã anteriormente são afirmativas comuns nas comunidades cristãs, porém, Satã que teve origem na cultura judaica não apresentava um papel maléfico, nas escrituras ele sempre foi um ser que ama tanto o criador que busca ajudá-lo em suas tarefas e uma delas é testar a fé dos homens, muito voltado aos religiosos, porque eles são os que mais costumam orar e dizendo ser bons mas muitas das vezes costumam ser hipócritas, passam uma imagem para sociedade de santidades e no dia-a-dia pregam o contrário daquilo que falam, por isto o papel de Satã é testemunhar, comprovar a dignidade, caráter das pessoas e muitos temem esta aproximação e observação. O mais interessante é que Satã não possuía chifres e nem rabos, nem muito menos garfos para espetar pessoas, mas esta parte folclórica foi tão predominante ao ponto de começarem a acreditar que isto se encontra na bíblia em seu idioma original.
Há muitas questões que não são citadas na Bíblia e muitos religiosos tiraram suas próprias conclusões, um exemplo, é a afirmativa de que Satã tinha atentado Eva no Jardim do Éden, e não há nenhuma menção no livro de Gênesis. E somente depois de longos anos que os cristões resolveram interpretar a serpente como uma encarnação do Diabo.
A imagem de um Satanás que governa o inferno e inflige tortura e castigo aos pecadores também não encontra correspondência no texto bíblico.

Nos primeiros séculos do Cristianismo não existia nenhuma afirmativa sobre o Diabo. Porém os cristões acreditavam fortemente de que os deuses pagãos (considerados crenças de outras culturas), como o egípicio Bes e o grego Pan, eram demônios responsáveis pela causa de diversas doenças, guerras e catástrofes na natureza.
Cem anos depois, o Diabo apareceu através de uma arte ocidental, muito longe de onde foi criado a Bíblia e de onde seus autores tiverem experiências. A primeira figura do Diabo que surgiu no mundo possui atributos físicos dos deuses pagãos: pêlo facial de Bes e as patas de cabra e chifres de Pan.

O DIABO VEM DEPOIS

Sem sombra de dúvidas, a história aponta que o Diabo passou a ser temido através de diversas afirmativas da igreja antiga durante a Idade Média, pois foi uma época de muito sofrimento, havia pouco desenvolvimento científico, inclusive quando surgiu a Peste Negra, foi uma pandemia devastadora, a Europa não tinha vivenciado algo tão assustador, não havia explicações de como era causada e qual era a cura, o que tinha é apenas uma explicação religiosa de que o Diabo estava atormentando os fiéis e que os locais onde se propagava a doença indicava sinais absolutos de que havia práticas contra a igreja, ou melhor, como eles chamavam seus inimigos “adoradores do Diabo”. Algumas discussões filosóficas foram feitas a cerca do assunto e alguns acreditam de que a igreja fez isto como forma de manter seus fiéis em um bom caminho e para que eles continuassem mantendo as esperanças e pudessem buscar por suas orações, o que eu considero uma forma de usar o medo para conversão.

Algo que chama bastante a atenção é que o Diabo não era em si, considerado apenas o anjo Satã, e sim, todas crenças que não fossem cristãs, tanto que conhecemos ditados populares no português de que “o Diabo é o pai das mentiras e possui diversos nomes”.

Com o passar do tempo, algumas crenças foram deixando de ter influências, a cultura dos gregos como os cultos à Zeus, Hades, entre outros deuses deixaram de ser presente, e não se ouviu tanto a igreja citá-los como figuras do Diabo.

A ideia cristã de tratar a cultura africana entre outras que teve surgimentos através dela como algo diabólico, não tem a ver apenas no sentido religioso, mas também o preconceito racial, mas será que isto realmente acontece? Dificilmente vejo um cristão clamando o sangue de Jesus quando é mencionado a palavra “Zeus”, mas ao dizer “Exú” é muito comum.

No Brasil o racismo e a discriminação nos remontam à escravidão porque desde o Brasil colônia rotulam as religiões e crenças pelo simples fato de serem de origem africana, como algo demoníaco, até mesmo a ideia de que o negro não tinha alma e que era a cor do pecado, infelizmente não foi algo que deixou de existir. Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR) mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

Èṣù com certeza não é o Diabo e as religiões africanas não cultuam Satanás. Dificilmente um cultuador de Èṣù verá o Cristianismo como inimigo, até porquê não é uma religião que busca como obrigação a conversão das pessoas ou caso ao contrário irão ser enviadas para o inferno, não é de costume dos cultos yorùbás bater em portas para convencer da uma verdade, não há a necessidade. As pessoas devem buscar por aquilo que gostam ou se sentem bem e não serem obrigadas ou forçadas pelo medo.

– FONTES:

PUFF, Jefferson. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil?. BBC Brasil. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm>. Acesso:  04 jan. 2024.

DENOVA, Rebecca. A Origem de Satanás. World History Encyclopedia. 2021. Disponível em: <https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1685/a-origem-de-satanas/>. Acesso: 04 jan. 2024.

Como o diabo ficou vermelho e ganhou chifres?. BBC NEWS BRASIL. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160508_diabo_vermelho_chifres_rb>. Acesso: 04 jan. 2024.

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