ESíntese da cultura japonesa, a Cerimônia do Chá oferece uma atmosfera de paz e simplicidade, com significados especiais para cada detalhe
Texto • Erica Franquilino
As pedras úmidas na calçada e o portão de entrada ligeiramente entreaberto são sinais de boas-vindas aos convidados. Basta entrar, em silêncio. Na Cerimônia do Chá, cada gesto, movimento ou detalhe do lugar tem um significado especial. A tradição do ritual japonês – também conhecido como Chanoyu ou Chado, o “caminho do chá” – se mantém há séculos sob regras que primam pela simplicidade e comunhão com a natureza. Um universo de harmonia, respeito, pureza e tranquilidade, imerso em uma xícara de chá.
A Cerimônia do Chá consiste na tradicional arte de servir e beber o matcha, o chá verde em pó. A cerimônia completa, que dura cerca de quatro horas, é dividida, basicamente, em duas partes: a primeira é reservada a uma refeição leve e na segunda parte são servidos o chá forte, koicha, e o chá fraco, usucha. O número de convidados depende do espaço e do motivo da reunião, mas em geral restringe-se à média de cinco pessoas.
O Chanoyu é realizado quando se quer celebrar algo, “pode ser um aniversário de casamento, a despedida de um amigo ou uma celebração ao início da primavera, por exemplo”, explica a professora de Chado Bertha Hoshi Nakao. Neta de japoneses, Bertha começou a estudar a cerimônia do chá há cerca de 35 anos, no Japão.
A origem da tradição
O matcha foi introduzido no Japão por monges zen-budistas, depois de regressarem de uma viagem de estudos à China, no século 12. Para os sacerdotes a bebida tornou-se um auxílio nos momentos de vigília e meditação. Aos poucos, o gosto pelo chá verde foi sendo difundido também entre as camadas mais altas da sociedade e, por volta do século 14, a bebida passou a ser objeto de festividades, com jogos e premiações.
Gradativamente, tais festas foram convertidas em reuniões sociais mais tranquilas, nas quais os convidados provavam o chá em uma atmosfera de contemplação à arte. Com o tempo, determinadas regras foram incorporadas às reuniões, fruto da influência dos samurais – classe dominante na sociedade japonesa da época – e da filosofia de vida zen-budista, que daria estrutura definitiva à cerimônia.
Os monges estabeleceram os fundamentos espirituais do Chado, a manufatura dos utensílios, bem como o desenho e construção das salas de chá. “O mestre Sen Rikyu, que deu formato à cerimônia que praticamos há séculos, era um monge. Quem estuda o chá também tem aulas de zen”, destaca Bertha.
O legado deixado pelo mestre Sen Rikyu (1522-1591) é um divisor de águas. Foi ele quem aperfeiçoou o estilo da cerimônia, concebendo o chá como um estilo de vida. De acordo com Rikyu, sete regras básicas devem ser observadas para a realização do Chanoyu. São regras simples, mas que requerem cuidado e dedicação, como prover calor no inverno e frescor no verão; dispor as flores como se estivessem no campo e agir com máxima consideração em relação ao convidado.
Princípios espirituais
A base de todas as regras da cerimônia e, ao mesmo tempo, a síntese de seu significado espiritual está nas palavras wa kei sei e jaku. “Wa” diz respeito à harmonia que deve existir dentro de cada um, na relação com a natureza, com os utensílios e dos próprios utensílios entre si – estes devem combinar forma, cor e estar em conformidade com o tema. “Kei” refere-se ao respeito por todas as pessoas e objetos, em um sentimento de gratidão por sua existência.
Já no cerne do conceito de “sei” está a pureza de sentimentos. “É o anfitrião quem limpa os utensílios e cuida de todos os detalhes envolvidos”, ressalta Bertha, umas das professoras do Centro de Chado Urasenke do Brasil, localizado em São Paulo. Conseqüência natural dessa cadeia, “Jaku” representa a tranqüilidade, fruto da percepção dos três primeiros princípios.
A cerimônia

Os convidados devem chegar ao local com cerca de 15 minutos de antecedência. Eles então percorrem um caminho ajardinado com pedras, seguindo até a sala de espera, onde deixarão seus pertences. Nesse caminho há uma bacia de pedra com água, na qual cada uma das pessoas lava mãos e boca, em um ato que simboliza a purificação.
Na sala de chá (cha-shitsu), os convidados ajoelham-se diante do tokonoma – lugar mais importante da sala – para reverenciar o kakemono, um rolo suspenso na parede com a caligrafia de um monge Zen ou mestre de chá, que indicará o tema da reunião. Todos tomam seus lugares no tatame. O convidado principal ocupa o lugar mais próximo ao anfitrião.
É servida uma refeição, o kaiseki, com alimentos frescos, próprios da estação. Na seqüência são servidos os doces. O próximo passo é a cerimônia do carvão, quando se acrescenta mais carvão à brasa para ferver a água e um incenso é aceso para purificar o ambiente. O anfitrião então sugere uma pausa, o nakadashi. Enquanto os convidados aguardam no jardim, o kakemono é substituído por um arranjo de flores que, como as regras do Rikyu sugerem, devem estar dispostas da forma mais natural possível.
Enfim, o chá
No momento em que faz soar o gongo, chamado de goza-iri, o anfitrião avisa que terá início o momento mais importante: será servido o chá forte, o koicha. Ele se retira para buscar cada um dos utensílios que será utilizado durante a cerimônia, purificando-os com água fresca na presença dos convidados. Em seguida, o anfitrião começa a misturar o matcha à água quente, até que o chá adquira uma consistência cremosa.
Todos os passos da cerimônia são conduzidos a partir do convidado principal, o primeiro a provar o chá. Depois de limpar o lado por onde bebeu com um tecido de linho, o chakin, ele vira a tigela duas vezes no sentido anti-horário – em sinal de respeito – e a passa para o próximo convidado. Todos compartilham da mesma tigela, em um sentimento de comunhão. Quando o último convidado beber o chá, a tigela é passada ao convidado principal que irá entregá-lo ao anfitrião. Encerrada a cerimônia do chá forte, o convidado principal pede licença ao anfitrião para observar os utensílios.
Chega então o momento de servir o chá fraco, o usucha. Antes de dar início aos procedimentos para servi-lo, faz-se novamente a cerimônia do carvão. Doces são oferecidos aos convidados antes de o anfitrião começar a bater novamente o matcha. A principal diferença em relação ao koicha é que o usucha é feito individualmente.
Ao fim de toda a cerimônia, os utensílios são deixados na sala para que possam ser observados. Recolhidas as peças, o anfitrião faz uma reverência silenciosa aos convidados, indicando o término da reunião.
Vale lembrar que o Chanoyu obedece a uma determinada ordem de procedimentos, que varia em função do tema e da estação do ano. Dada a riqueza de detalhes, o que você acompanhou foi uma breve descrição de uma cerimônia completa.
Para a professora Bertha, a “oportunidade de perceber e viver cada momento” traduz um pouco do que é essa filosofia de vida, compartilhada na aparente simplicidade de servir e beber o chá.
De onde vem o chá
Estava o Imperador chinês Shen Nung, pelos idos de 2.800 a.C., fervendo água (no sentido de purificá-la) embaixo de uma árvore, quando algumas folhas caíram dentro do recipiente. Atraído pelo aroma, o imperador arriscou tomar alguns goles. Ele não apenas gostou, como passou a fazer experiências com vários tipos de folhas. Assim nascia o chá.
A despeito do romantismo da lenda, o hábito de tomar chá teve origem na China da Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.). À época, era consumido não apenas como bebida, mas também como tônico medicinal.
O tradicional chá verde chegou ao Japão no século 12, pelas mãos de monges zen-budistas. A partir de então, passou a fazer parte de rituais religiosos e tornou-se parte essencial da educação japonesa. Hoje, é a bebida mais consumida do país.
Também bastante consumidos, o chá preto e o oolong são provenientes das folhas da mesma planta, a Camellia Sinensis. O que os diferencia é o processo de beneficiação e o período da colheita.
Para usar e apreciar
Considerados obras de arte, os utensílios condizem com a época do ano e o tema da reunião. Saiba quais são os principais e sua utilização durante a cerimônia:
Kama: caldeira de metal onde será fervida a água, sobre o furô.
Furô: fogareiro, que pode ser fixo ou portátil.
Mizussashi: vasilhame de cerâmica para água fresca, usada para a purificação dos utensílios.
Kensui: pote de metal onde é dispensada a água que já foi utilizada para a purificação.
Futaoki: descanso onde se colocam a tampa do kama e o hishaku.
Hishaku: concha de bambu para pegar água quente.
Natsumê: pote de madeira laqueada para o chá fraco, que é feito com duas colheres de matcha para cada convidado.
Chaire: pote de cerâmica para o chá forte. Para esse chá, o koicha, são utilizadas três colheres de matcha por convidado.
Chawan: tigela de cerâmica, espécie de xícara para beber o chá.
Fukusa: guardanapo de seda para purificar os utensílios antes de se fazer o chá forte. Usa-se o fukusa vermelho para a mulher e o roxo para o homem.
Chakin: tecido de linho branco, usado para secar a chawan depois da purificação e para limpar o lado por onde o convidado bebeu o chá forte. Cada convidado tem de levar seu chakin.
Chasen: batedor de chá, uma espécie de vassourinha, feita de bambu.
Kaishi: guardanapo de papel, usado para amparar o doce.
Chashaku: parecida com uma colher, mas feita de bambu, é usada para pegar o matcha e colocá-lo dentro da chawan.
Fonte: Triada.com.br