Com cores e alegorias vibrantes, histórias e ensinamentos embutidos, as thangkas encantam o espírito de incrédulos e devotos. Conheça esta rica e complexa pintura tibetana.
Texto • Isis Gabriel / Fotos • Wikipédia
Conta-se que Buda emanava um brilho próprio que ultrapassava as percepções humanas. Por isso, os artistas não conseguiam retratá-lo olhando-o diretamente – somente através de seu reflexo espelhado no rio. Certo dia, um rei decidiu presentear o monarca de uma terra distante com uma imagem de Buda. Ao receber o pedido para se deixar retratar, Buda Shakyamuni aceitou o convite com a condição de que os símbolos dos doze elos da existência condicionada e os ensinamentos de como todos os fenômenos surgem na mente, além de uma descrição dos ensinamentos, fossem incluídos abaixo de sua imagem. E assim foi feito. O rei presenteado, ao ver tal obra, ficou tocado por sua beleza e pediu para que lhe explicassem, em detalhes, os símbolos e representações da figura. Depois de ouvir, inspirado, ele começou a meditar. Mais tarde, repleto de alegria, convidou monges para difundirem a doutrina de Buda, o chamado dharma, em suas terras.
Lenda ou não, o fato é que as pinturas sagradas transportadas por monges itinerantes foram um importante instrumento na transmissão dos ensinamentos budistas para povos de terras e diferentes culturas.
Lições em forma de arte
As pinturas tibetanas representam iconograficamente a filosofia budista. As imagens, as proporções e o simbolismo das obras condensam antigos textos sagrados e falam diretamente às pessoas, por meio de uma linguagem não-verbal. Mais que isso: as pinturas transmitem valores fundamentais para o budismo, como a interpretação individual dos ensinamentos e a meditação.
A arte da pintura tibetana pode ser vista nos murais de templos e monastérios budistas, em manuscritos iluminados e nas chamadas thangkas. Imagens sacras coloridas em telas de algodão, seda ou linho engomado, as thangkas se popularizaram graças ao fato de poderem ser facilmente enroladas e transportadas.
Durante muito tempo, esse tipo de trabalho foi praticado apenas em torno dos grandes monastérios, afinal, antes de qualquer coisa, realizar uma thangka é um ato religioso. Assim, monges passavam as técnicas somente para monges. Com o passar dos anos, porém, tudo mudou. Hoje, encontram-se thangkas em lojas e até mesmo à venda nas ruas de países asiáticos, onde o budismo é largamente praticado.
Susana Uribarri, professora da técnica: “Cada sessão de pintura é um novo ritual”
Geralmente feitas em posição vertical, as thangkas trazem imagens de budas, mestres, bodhisattvas e deidades. São expostas em templos e altares domésticos e utilizadas em cerimoniais e festivais públicos – nesses casos, possuem grandes dimensões e são colocadas em muros de monastérios e na encosta de colinas.
Mas, ao contrário do que acontece com a arte católica, não há adoração das imagens budistas. Os devotos utilizam as thangkas como fonte de inspiração para práticas meditativas e para depreender os ensinamentos de Buda. Representações de Buda e bodhisattvas conferem bênçãos e inspiram a meditação. Imagens de mestres e gurus lembram os ensinamentos. Deidades (yi-dams) despertam para a iniciação de práticas de visualização. Já as figuras iradas (dharmapalas), de cor escura e aspecto terrível, invocam proteção.
Raízes sagradas
A arte sagrada chegou ao Tibete por volta do século 7, quando o Rei do Dharma Srong-btsan-sgam-Po, que oficializou o budismo no reino, casou-se com princesas budistas do Nepal e da China. As moças levaram consigo estátuas e relíquias budistas, e não havia lugares adequados para guardá-los. O rei, então, decidiu construir os templos de Jo-khang e Ra-mo-che para armazenar tais objetos sagrados. A partir dali, patrocinados pelo monarca e sob influências, principalmente, da Índia, China e Nepal, artistas tibetanos começaram a estudar e praticar a arte budista.
Rito cheio de significado
Por seguirem descrições de textos sagrados, as representações iconográficas tibetanas cumprem regras severas para toda a composição das pinturas, inclusive das thangkas.
Tradicionalmente, a preparação de uma thangka é feita em meio a um cerimonial – deve-se meditar, purificar os materiais de uso e o ambiente de trabalho, fazer oferendas e entoar mantras. “Quando o artista começa a fazer um trabalho, o ambiente deve ser modificado dentro do conceito de vacuidade – que não é o vazio e sim a união de tudo com tudo e de onde vêm todas as coisas”, explica a professora e artista plástica budista Susana Uribarri.
Susana, que é argentina e está no Brasil desde 1981, diz que todo esse ritual serve para não contaminar o trabalho com o ego mundano do artista. “Cada sessão de pintura é um novo ritual. Depois que termino, eu ofereço o mérito, porque é para benefício de todos os seres. Tudo que eu fiz ali não foi para mostrar como sou uma boa artista, e sim para que as pessoas que estejam contemplando aquele trabalho consigam alguma forma de benefício”.
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Sem assinatura
“Pensar em pintar de um jeito que simplesmente vai ficar bonito, neste tipo de trabalho, não tem cabimento. A thangka não é uma invenção do artista, todos os elementos são expressões da divindade”, explica a artista plástica argentina. Por tudo isso, a thangka não leva a assinatura do pintor. O artista pode, no máximo, colocar a data e o nome atrás da tela.